“É possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões." (Dostoievski, em Crime e Castigo)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Justiça com olhos vendados e espada na mão: que perigo!

A imagem da Justiça em quatro dimensões: na imagem da Justiça destacam-se três elementos: (a) a balança (que significaria equilíbrio); (b) a espada (que revela a sua força) e (c) os olhos vendados (que retrataria sua imparcialidade). Dessa imagem da Justiça podemos extrair quatro dimensões (Nilton Bonder): Primeira (o aparente do aparente): "A Justiça sem força é impotente" (Pascal) - a balança sem a espada é impotente; Segunda (o aparente do oculto): "A força sem justiça é tirânica" (Todorov) - a espada sem a balança é tirânica; Terceira (o oculto do aparente): A Justiça com olhos vendados e espada na mão significa perigo; Quarta (o oculto do oculto): A Justiça quando tira a venda dos olhos e vê o réu como inimigo deixa de promover a paz (a balança), para disseminar a guerra (a espada).
Justiça e injustiça (cara e coroa): a Justiça existe para distribuir justiça, ou seja, deveria dar a cada um o que é seu, sem ver diferença entre as partes em litígio. Ocorre que o exercício da administração da justiça (sendo obra humana) também pode gerar (muita) injustiça (errare humanum est). A sombra da justiça, portanto, é a injustiça. Aliás, praticamente tudo na nossa vida está estruturado dessa maneira, dicotomicamente: ser e nada, homem e mulher, dia e noite, branco e preto etc. A justiça, de qualquer modo, é condição da possibilidade de injustiça (Messuti: 2008, p. 17).
Balança e espada: se na mão esquerda a imagem da Justiça segura uma balança (que procura simbolizar equilíbrio), na direita ela ostenta uma espada (que é a força). Com uma espada na mão, convenhamos, tanto podemos fazer justiça como injustiça. Esta última, sobretudo quando estamos tomados pela cegueira do absolutismo, se torna inevitável. A tentação do absoluto (do fundamentalismo, do radicalismo) é fonte sempre da desgraça humana (Sófocles).
Populismo penal e injustiça: o populismo penal, que é um movimento hiperpunitivista fundamentalista, apregoa a distribuição da justiça pela medida da vingança, da emotividade, da exemplaridade. Esse tipo de fundamentalismo está no âmago da justiça retributiva (vingativa), incrementando-se assim, agudamente, o risco de a espada da Justiça provocar incomensuráveis e indevidos cortes (injustiças). No campo penal, aliás, o fundamentalismo justiceiro (a injustiça) está para a justiça como a loucura está para a razão.
Talvez não exista nenhuma outra área do direito em que a demarcação (sempre difícil) entre justiça e injustiça esteja tão próxima do fio da navalha (da espada). É que o direito penal é constituído por um conjunto de normas e regramentos de profundo conteúdo ético e moral. E aquilo que ofende os costumes e valores mais sedimentados da população constitui um ato profano, uma grave ofensa a uma divindade, a algo sagrado. Como dizia Durkheim, "por detrás do crime e do castigo do infrator há sentimentos muito fortes. Por trás do castigo há uma emoção irracional e irreflexiva determinada pelo sentimento de profanação do sagrado."
A destruição dos nossos bens mais relevantes constitui a profanação de uma divindade. Isso gera uma emoção irracional e irreflexiva, ou seja, uma paixão, que é alimentada pelo desejo de vingança, que está presente em todo "coração humano", é dizer, em toda manifestação populista que, pedindo "justiça", quer, na verdade, vingança.
Cultura da pena máxima: há crimes que realmente merecem dura reprovação. Nos dias atuais, só para citar um exemplo, encaixa-se nesse figurino a violência machista. Mas, nem tanto à terra nem tanto ao mar.As reivindicações populares de pena máxima não retratam (quase nunca) equilíbrio ou proporcionalidade. A única explicação (ou uma das mais fortes explicações) para a difusão da pena máxima, que está passando a constituir a nova "medida" (régua) da Justiça, é o populismo penal.
Da pena mínima se passa para o padrão da pena máxima, em razão do clamor popular e midiático. A voz do povo + a voz da mídia + a profanação do sagrado = a voz de Deus. E, em nome de Deus, maximum poena (severidade máxima no castigo). Essa é a atual tendência na era da pós-modernidade. Estamos voltando aos tempos da barbárie, quando não tínhamos uma sociedade organizada.

Luiz Flávio Gomes Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Jornal Carta Forense, segunda-feira, 5 de março de 2012

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