“É possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões." (Dostoievski, em Crime e Castigo)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

CRÔNICAS FORENSES Esqueleto



A filha de um importante industrial fluminense estava se afogando em Ipanema, no Rio de Janeiro, quando um homem rapidamente entrou no mar, nadou com largas braçadas e a alcançou, trazendo-a com vida à praia.
Exímio nadador, era um jovem alto e muito magro, cujas costelas apareciam, tendo, por isso, o apelido de "Esqueleto". Humilde e de pouca instrução, passou a ser protegido pelo pai da moça, que lhe ficou eternamente grato. Sempre que "Esqueleto" precisava de algo - um emprego ou um auxílio financeiro - o industrial o socorria.
Mas "Esqueleto" tinha uma particularidade: odiava seu apelido. E um vizinho, para provocá-lo, não deixava de assim chamá-lo, dia após dia, mês após mês, ano após ano, sempre que o encontrava.
Certa manhã, depois do vizinho ter, pela enésima vez, o chamado de "Esqueleto", resolveu se vingar. Arrumou um bom pedaço de madeira, colocou um prego grande em uma das extremidades e aguardou em uma esquina que o vizinho, ao regressar do trabalho, por ali passasse. Quando este apareceu, desferiu um certeiro golpe em sua cabeça, matando-o instantaneamente.
Não fugiu do local, sendo preso em flagrante e levado a uma Delegacia. De lá, telefonou para o industrial, pedindo ajuda. Este mais uma vez o auxiliou, contratando para defendê-lo ninguém menos do que Evandro Lins e Silva, um dos maiores criminalistas do século passado.
Durante a instrução do processo, a frieza e a premeditação de "Esqueleto" foram confirmadas, e sua defesa parecia impossível.
No júri, após a contundente acusação do Promotor e a dura fala do Assistente do Ministério Público, foi dada a palavra a mestre Evandro.
O grande tribuno iniciou sua fala com as saudações de praxe: "Exmo. Sr. Presidente, ilustre Dr. Promotor, digno Assistente do M. Público"...Após uma pausa, repetiu a mesma saudação, e, depois, uma terceira vez. O juiz, estranhando a repetição, disse-lhe que podia iniciar sua defesa, pois já estavam devidamente saudados.
Evandro, impávido, tornou, entretanto, a repetir, pela quarta vez, aquela saudação. O juiz, irritado, interrompeu-o antes que terminasse, dizendo: "Dr. Evandro, não estou entendendo sua atitude. O senhor, um advogado dos mais eminentes, está brincando conosco? Por favor, comece imediatamente a sua defesa".
O mestre, mantendo absoluta calma, como se nada de anormal estivesse acontecendo, passou a repetir, pela quinta vez: "Exmo. Sr. Presidente..." O juiz, já descontrolado, de novo o interrompeu, ameaçando-o: "O senhor vai me obrigar a declarar o réu indefeso e prendê-lo por desacato".
Aí, Evandro falou: "Agora já posso começar a minha defesa. Vejam, srs. jurados, o Juiz Presidente que me conhece há mais de vinte anos, com quem fiz dezenas de júris, depois de provocado por cinco minutos - contei no relógio - está querendo me prender. Imaginem, então, este pobre acusado, caçoado anos e anos em público pela vítima, que não cansava de chamá-lo de "Esqueleto"...
Com essa brilhante estratégia o saudoso mestre logrou desclassificar a acusação para homicídio privilegiado, ou seja, impelido por relevante valor moral, reduzindo a pena de um terço... 

Jornal Carta Forense, segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Roberto Delmanto
Advogado Criminalista, é co-autor doCódigo Penal Comentado e das Leis Penais Especiais Comentadas, e autor dos livros de crônicas Causos Criminais e Momentos de Paraíso - memórias de um criminalista, o primeiro pela Editora Saraiva e os demais pela Editora Renovar

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