Autor: Luiz Flávio Gomes. Doutor Em Direito Penal Pela Faculdade De Direito Da Universidade Complutense De Madri, Mestre Em Direito Penal Pela Usp.
Em 30 de abril de 1945 Hitler se suicidou em seu bunker. Três dias depois o Exército Vermelho russo tomava Berlim, capital do III Reich nazista. Há sessenta anos decretava-se o fim da II Guerra Mundial. O nazismo pretendia dominar o mundo por mil anos, mas não resistiu a doze (1933 a 1945). Qual a principal lição que aprendemos? A humanidade não tolera o horror e o holocausto! Seis milhões de judeus morreram (dos quais, 1,5 milhão de crianças); três milhões de homossexuais, ciganos, comunistas, deficientes físicos, negros e testemunhas de Jeová também foram dizimados. O mais chocante: tudo foi feito com base na lei!
Isso comprova que o positivismo legalista não conseguia (e não consegue) limitar o legislador. Que, com base na lei, é possível mandar para os fornos milhões de pessoas. Que o Direito penal não pode ter como finalidade só o cumprimento da norma. Se a norma for injusta e aberrante não se lhe pode dar cumprimento. Mas no tempo do nazismo vivia-se ainda sob o império do Estado liberal (Estado de Direito puro e simples). Confundia-se lei com Direito. Estado de Direito era, na verdade, estado de legalidade. Confundia-se também vigência com validade da lei.
A ciência penal da época tentou reagir contra os desmandos do nazismo. Tentou impor limites ao legislador. Isso foi feito, sobretudo, por Welzel (1904-1977) que, criticando a visão causalista e neokantista precedente, forjou a teoria das categorias lógico-objetivas (ontológicas), na crença de que elas vinculariam o Poder Legislativo. Tais categorias eram: (a) toda ação é finalista; (b) o homem conta com autodeterminação. O sonho de Welzel não se concretizou. O mundo legiferante pouca atenção dá para o mundo acadêmico. Vivem de costas um para o outro.
Era preciso inventar outra artificialidade para pôr freio à atividade do legislador ordinário. Nasce assim, logo após a II Guerra Mundial, o constitucionalismo. Concomitantemente eclode a noção de Estado Constitucional de Direito, que se caracteriza, em princípio, consoante Ferrajoli (Direito e razão, RT, 2002), por duas artificialidades: (a) positivação dos direitos humanos fundamentais; (b) positivação de regras formais e substanciais para a produção do Direito. O legislador já não pode escrever em textos legais o que bem entende. Toda lei só vale quando segue o procedimento formal de sua criação e nos limites dos direitos fundamentais. Vigência não se confunde com validade. A vigência está regida pela lógica das maiorias (democracia das maiorias). Validade significa compatibilidade do texto aprovado com a Constituição (democracia substancial).
Para se assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais surgiu uma terceira artificialidade, que é o controle de constitucionalidade das leis. Toda antinomia (conflito positivo entre a produção legislativa e a Constituição) ou lacuna (omissão legislativa) deve ser eliminada pelo órgão que faz o controle de constitucionalidade (Poder Judiciário).
Inconcebível, destarte, diante do contexto histórico do século passado, supor que o Direito penal não tenha outra finalidade que não seja o cumprimento da norma (Jakobs). Sempre e quando a norma for aberrante e injusta, não se lhe pode dar cumprimento. O juiz já não é a “boca da lei” nem a “boca do Direito”, sim, a boca “dos direitos humanos fundamentais”. Do contrário, a humanidade sempre corre o risco de testemunhar novos holocaustos (tal como ocorreram em Ruanda, ex-Iugoslávia etc.).
A utopia com a qual temos que trabalhar neste princípio de novo século é a de que, com as garantias do Estado Constitucional e Democrático de Direito, talvez seja possível aplacar todos os holocaustos em curso ou projetados. No âmbito estrito do Direito penal, de forma alguma podemos dar abrigo para o chamado Direito penal “de autor”, que condena a pessoa não pelo que fez, sim, pelo que é. Todos os que foram condenados pelo nazismo, mas particularmente as 1,5 milhão de crianças judias, perguntavam: “o que eu fiz para ser condenado à morte?” Os executores respondiam: “você não fez, você é judeu, você é homossexual, negro, deficiente físico, etc.”
No atual Estado Constitucional de Direito isso está absolutamente vedado. O único Direito penal compatível com ele é o “do fato”, que exige a exteriorização de um fato ofensivo grave a bens jurídicos relevantes de terceiros. Fora desse limite jamais pode ter incidência o poder punitivo estatal, que deve ser contido e vigiado diuturnamente.
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