A Lei 12.403/11, que dispõe que o juiz, antes de decretar a prisão preventiva, deve analisar se cabíveis outras medidas cautelares alternativas, constitui um avanço ou um retrocesso? Dois grupos (ideologicamente definidos) já se formaram: para quem concebe que não existe direito penal sem cadeia, a lei é um retrocesso. Para os que veem a cadeia como a “extrema ratio” (extrema medida) da “ultima ratio” (que é o direito penal), a lei é digna de aplausos.
A nova lei
(de acordo com nossa visão) nada mais faz que enfatizar o que já se
extrai da Constituição Federal: a liberdade é a regra, a prisão é
exceção. Para se prender alguém presumido inocente é preciso que todos
os requisitos da prisão preventiva estejam presentes.
Por que uma
mesma realidade (uma única lei) permite pontos de vista tão díspares,
tão antagônicos? É que cada um interpreta a mesma realidade de acordo
com sua peculiar visão (conservadora, liberal, extremista, pragmática,
eficientista, garantista etc.).
O aplicador da lei não foge (em
geral) dessa regra: “também ele deve interpretar e ao interpretar
estará fazendo a partir de sua circunvisão, de sua perspectiva, que
parte de uma compreensão, que só subsiste a partir de uma
pré-compreensão.” (Heidegger).
Sob o título “A pré-compreensão e a
compreensão na experiência hermenêutica”, há um texto de Amandino
Teixeira Nunes Junior na internet (Jus Navegandi, visitado em 18 de
junho de 2011), que analisa a hermenêutica (teoria da interpretação) na
visão de Heidegger e Gadamer.
O que se pode extrair desse bem
escrito trabalho é o seguinte: nós, como intérpretes, em regra não
somos isentos, neutros. O intérprete já possui uma pré-compreensão
(guiada por uma ideologia) daquilo que vai interpretar. Se o intérprete
não abre espaço para a alteridade do texto (para a outra visão da
questão), como diz Gadamer, o resultado da interpretação só pode atender
aquilo que já estava pré-concebido. Primeiro decidimos de acordo com
nosso inconsciente (que é uma força incontrolável, como dizia Freud),
para depois fundamentar a nossa posição pré-estabelecida.
O
intérprete “já possui uma pré-compreensão daquilo que vai interpretar,
inclusive das palavras que irá usar. Essa pré-compreensão está adstrita à
circunvisão dele mesmo e, à medida que se chega ao compreendido
(aquilo que se abre na compreensão), este se torna de tal forma
acessível que pode explicitar-se em si mesmo "como isso ou aquilo" e
este "como" constitui a própria estrutura da explicitação do
compreendido, a interpretação.”
A interpretação “parte de uma
estrutura prévia caracterizada (posição prévia, visão prévia, concepção
prévia) adstrita à circunvisão do intérprete. Como afirma Heidegger:
"A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa
posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é
a apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições. (...) Em
todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que
a interpretação necessariamente já "põe", ou seja, que é
preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção
prévia."
Sendo o homem “uma conjugação dele
mesmo mais a sua vida” (nós somos frutos da nossa história, das nossas
memórias, das nossas experiências, ou seja, como dizia Ortega y Gasset:
“eu sou eu e minhas circunstâncias”), as suas impressões prévias, a
sua cultura prévia, enfim, todos os seus preconceitos, acabam
impregnando a interpretação (de tudo que se nos apresentam).
Destarte,
“o ‘ser’ do intérprete contamina a interpretação que ele fará, porque,
em sendo ele um indivíduo inserido num contexto social, histórico,
lingüístico, etc, a interpretação feita estará, necessariamente,
associada às suas impressões anteriores, à sua pré-compreensão.”
O
resultado de praticamente tudo que interpretamos já está dado desde o
início. É que primeiro decidimos de acordo com nosso inconsciente e só
depois vamos buscar argumentos (mais ou menos racionais) para
fundamentar nossa decisão. Heidegger (como bem sublinhou Amandino
Teixeira Nunes Junior) “nos leva a concluir que não há interpretações
definitivas, elas hão de ser estudadas à luz do tempo em que foram
concebidas e tendo em vista as possíveis pré-compreensões do
intérprete, de maneira que nós mesmos ao lê-las, a partir de nossas
pré-compreensões, dentro de nossas circunvisões, também estaremos
abrindo um novo sentido, uma nova possibilidade de interpretar.”
A
compreensão (interpretação) atua dentro de um "círculo hermenêutico",
inseparável da existência do intérprete. Nós somos frutos da nossa
história. As interpretações que fazemos, em geral, seguem essas
premissas. Não se pode conceber a compreensão (e a interpretação) fora
de um contexto histórico e social, que vem aliado a uma ideologia.
Qual
é o remédio para evitar o “círculo ou vício hermenêutico” que nos
conduz indefectivelmente (quase sempre) às nossas pré-compreensões? Ele
foi sugerido por Gadamer: é prestar atenção na alteridade do texto (na
outra visão, na outra forma de ver a mesma realidade): "em face a
qualquer texto, nossa tarefa é não introduzir, direta e acriticamente,
nossos próprios hábitos lingüísticos", mas "o que se exige é
simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto".
Como
bem explica Amandino Teixeira Nunes Junior: “Entra em jogo aqui a noção
de alteridade do texto exposta por Gadamer, pois "quem quer compreender
um texto, em princípio, tem que estar disposto a deixar que ele diga
alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada
hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para
a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem
neutralidade com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas
inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos,
apropriação que se destaca destes."
A interpretação (em regra)
parte dos nossos preconceitos (ou pré-juízos), que são muito mais do
que meros juízos individuais, mas a realidade histórica do nosso ser.
Toda história inventada sobre os métodos interpretativos (histórico,
sistemático, gramatical, teleológico etc.) não passariam, destarte, de
ferramentas (verniz) que encobrem nossos discursos (nossas linguagens)
já pré-concebidos (pré-concebidas). Tudo isso parece ter muita lógica.
Não te parece?
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